“Nunca conheci alguém tão apaixonado pelo que fazia como meu pai, amava o comprometimento” – Lia Ades, filha de César Ades

Eu fiquei pensando muito no que dizer hoje e eu me lembrei muito de uma situação, que foi quando eu me formei e meu pai foi o professor homenageado na época, eu fui escolhida para dizer e entregar o prêmio para ele. Eu lembro que eu fiquei meio sem jeito, mas eu não consegui me conter e o que eu fiz na hora foi meio que uma declaração de amor no palco, sabe. E eu tenho a impressão que é o que eu vou fazer agora.

O que escrever? Questiono-me olhando para uma vida inteira de convivência, de trocas e de afeto. O que escrever além de que eu amo demais o meu pai e que minha admiração é tamanha e que eu vou morrer de tanta saudade. Você era meu grande amigo. Serei breve.

Nenhuma palavra minha poderá contar de verdade sobre esse homem cheio de afeto que eu conheci e que me ensinou a enxergar uma vida em ebulição, uma vida que se manifesta sem trégua e que está aí para ser olhada, vivida, sorvida. Todos nós conhecemos o seu valor como cientista, como mestre, como amante do comportamento animal, como amigo incansável, como pessoa sempre presente onde quer que se fizesse necessária a sua presença. Eu tive o privilégio de conhecê-lo como pai.

Minhas primeiras lembranças são de um colo aconchegante e de uma vigília incansável, um abraço que em embalava e me acalmava. Ele desenhava para mim e me contava história, geralmente as duas coisas ao mesmo tempo. As mais antigas, acredito, tinham como herói um polvo chamado Pipo, outras um pouquinho mais tarde eram recheadas de detetives e de cientistas malucos.

Como não podia deixar de ser, qualquer mímica minha ou qualquer som era registrado em um dos seus inúmeros cadernos de anotações. Posso acompanhar todo o meu desenvolvimento graças a esses cadernos, todo mesmo, não escapei da paixão que ele tinha pelo comportamento animal.

Bem mais tarde, em uma de suas aulas, na qual eu era aluna ele contou uma de suas experiências comigo, pintara uma manchinha azul em minha testa e me colocara em frente ao espelho. A gente brincava muito e gravávamos fitas e mais fitas de conversas.

Eu gostava muito de ir com ele à USP onde procurávamos pegadas de supostos ursos, olhávamos as flores, visitávamos os laboratórios da Psicologia Experimental e, por fim, ele me fazia sentar numa pedrona, perto de um antigo barracão. Desde pequena eu ficava fascinada com seu olhar interessado, apaixonado até e me apaixonava também por ele, e pela simplicidade das coisas cheias de vida.

Em 1973 quando eu tinha quase três anos, tive uma participação privilegiada na tese de doutorado do meu pai, seu escritório em casa estava cheio de caixas com Argiope argentata, eu ficava lá com ele olhando, depositando com todo cuidado gotículas de água nas teias com a ajuda de uma seringa. Era engraçada a reação das minhas amiguinhas quando eu contava toda orgulhosa que meu pai estudava as aranhas.

Eu achava o máximo saber como as aranhas comiam, como atacavam suas presas, como faziam suas teias. Era inconcebível para mim alguém não achar aquilo lindo, ao mesmo tempo amigos meus que conheciam meu pai, queriam-no sempre por perto, um deles, amigos até hoje, disse que sempre procurava aranha em seu sítio quando pequeno para trazer e ter um início de conversa com o César, sempre fascinante.

O bonito disso é que eu cresci, e ele continuou me acalentando, me ensinando e me contando histórias, sempre. Até nos meus últimos minutos com ele, quando discutíamos um livro que pretendíamos escrever juntos ele me ensinou a ser eu, porque a vida vista através de seus olhos era toda promessa. Todos os dias nos falávamos e ele sempre tinha algo a contar, algum acontecimento simples, mas que em seus olhos e em suas palavras simplesmente se transformavam em poesia.

E assim foi. Para o meu pai pequenos acontecimentos eram grandes descobertas, tudo tinha importância, tudo era absorvido com entusiasmo, nos mínimos detalhes sensíveis. Uma florzinha amarela captada na lente de sua câmera, com todo cuidado, um encontro casual com um desconhecido, uma coincidência, um exemplo em suas palavras no e-mail.

Foi em Caxambú, no Parque da Cidade, fazia aquele frio gostoso mineiro, uma mancha de luz caia exatamente num canteiro de margaridinhas, cada uma delas um solzinho a parte, fluía tanta alegria que não pude me conter, tirei a foto que mando para você, para partilhar. Em janeiro estávamos na praia, ele, meu marido Zé e eu, abordamos um homem, era um inventor humilde divulgando e vendendo uma de suas grandes invenções, um tipo de bico de plástico que se encaixava em latas de refrigerante ou cerveja. Meu pai imediatamente o convidou a sentar-se e contar sua história, realmente interessado ia fazendo perguntas e mais perguntas.

O homem se sentiu importante, olhado. Como sempre, ao final da conversa meu pai tirou uma foto do inventor com seu invento e prometeu mandar para ele por e-mail. E assim foi. E assim era sempre.

Escreveu-me um dia, na caminhada perto de casa encontro às vezes tipos curiosos, hoje estava um morador de rua que de vez em quando dorme num dos bancos, tem um cobertor, mas por cima dele ele coloca um plástico que o cobre inteiro. Penso como respira só com os pés para fora.

Tinha um livro perto dele, Sob a Pele das Palavras, que vontade de conversar, mas não ia acordá-lo, nem fazia sentido. Fiquei inventando a história de um morador de rua que se interessava pela língua portuguesa, mas talvez ele tivesse carregando o livro só por carregar. Meu pai gostava de anotações, andava sempre com seu caderno, geralmente aqueles verticais que abrem para cima, cada um tinha como capa uma foto tirada por ele, o último inacabado tinha a foto da minha priminha.

Em muitas experiências pessoais muitas descrições de reuniões, ideias, filosofias, preparações de aula. Reencontro minha própria alegria de naturalista diz, sempre pronto a registrar o muito que pode ser visto. São muitos e muitos cadernos, além de um projeto de autobiografia no computador, organizados em pastas que datam ano a ano desde 1968. Uma vez me disse: “um dia, Lia, meus cadernos e minhas fotos serão teus, para você escrever a história da minha vida, um dia”.

Não tem como não falar das fotografias, talvez por ter esse jeito de olhar as coisas com eterna novidade, por gostar de luz e de cor e de pessoas, a imagem de meu pai vem associada a uma câmera fotográfica sem dúvida alguma, acho que a minha também, e a da Maria Clara também.

Meu pai amava Bach. Tinha diversos CDs e sabia diferenciar nuances de cada interpretação. Amor esse que data de sua época de aluno universitário. Ele disse: “lembro-me da pilha de discos de 78 rotações, pesados demais para a mensagem que continham, nos quais escutava Partita para Violino Desacompanhado, interpretado por Edir Menorrin, uma composição de extrema abstração, nua demais.

Era minha primeira audição, mas tão rica, quanto mais ouvia mais descobria pequenos trechos que me encantavam e mais o conjunto ganhava coerência. Nada, nenhuma nota poderia ser modificada. No fim, eu levava trechos inteiros na cabeça, nem precisava cantarolar, a harmonia se constituía sozinha num espaço privilegiado da consciência e se expandia para tudo ao redor”. Incrível a facilidade que tinha com crianças e com mais idosos, fazia amizades verdadeiras e imediatas, acho que sabia perceber a necessidade do outro, o que o outro gostava e ali entrava.

Lembro que com minha avó, mãe dele, que tinha Alzheimer, ele ficava lá horas cantando músicas da infância dela, lembrando de professores e amigos que ela teve quando pequena, e a fazia sorrir e cantar junto com ele, mesmo com a doença bastante avançada. Era assim com minha avó materna também, como ela é grega ele perguntava significado de palavras, interessado levava CDs de música grega e um caderno para anotar suas histórias, ficavam às vezes uma tarde inteira conversando. Com crianças então nem se fala. Tinha grandes amigos e amigas, todos pequenos. Não era difícil encontrá-lo embaixo da mesa brincando de esconde-esconde.

Queria muito ter tido um neto, mas mesmo sem tê-lo tinha todos os outros netos do mundo. Tive a honra de ser sua aluna, o amor pelo conhecimento e pela Psicologia em particular, já eram, como não podiam deixar de ser, parte inseparável de quem eu sou, em grande medida, porque convivi uma vida inteira com alguém que tinha na Psicologia e no conhecimento uma parte tão intrínseca a si mesmo.

Nunca conheci alguém tão apaixonado pelo que fazia como meu pai, amava dar aulas, o contato com os alunos e o comprometimento. Riamos de como tínhamos seguido caminhos inversos, ele que se imaginava trabalhando como clínico, seguiu como pesquisador, eu que sempre me imaginei pesquisadora tornei-me clínica. Conversávamos muito sobre tudo, discutíamos casos clínicos meus e pesquisas dele.

Éramos de fato muito parecidos. Meu pai era uma pessoa simples, não precisava de muito, era um colecionador de conchas, de canecas, de canetas e de momentos de vida, leitor de Filosofia, um sorrisão sempre aberto, um abraço, uma empolgação de ver alguém querido, fotos e memórias, ética e Psicologia. Penso que sou privilegiada, como filha, tive um professor de vida que acima de tudo ensinou-me o quanto essa é linda, que vale a pena ser sorvida em cada gota.

Fico muito emocionada de ver o quanto marcou a vida de muita gente que cruzou seu caminho, isso para mim é sinal de vida plena. Uma vez ele me disse: “Se fosse para escolher apenas duas coisas que eu gostaria de te ensinar seriam essas, uma é isso aí, Liazinha, a vida é isso aí; a outra, vamos que vamos”. Pois é pai, vamos que vamos, mas com muitas, muitas saudades.

2 Comments on ““Nunca conheci alguém tão apaixonado pelo que fazia como meu pai, amava o comprometimento” – Lia Ades, filha de César Ades

  1. Tive uma sensação gostosa ao me imaginar nas situações que viveu Lia Ades, lindas passagens e lembranças divinas lhe acompanharão por toda vida. Digo isso, pois sempre amei ouvir histórias, e como meus pais não sabiam ler, eu folheava revistas e os livros que me presenteavam, fantasiava histórias, enredos os mais variados até que aprendi ler. E, hoje sendo madrinha de um lindo menino chamado Eduardo (6anos) tenho praticado há três anos esses momentos mágicos, de descobertas, curiosidades, em que me encanta o olhar intrigado dele pelo novo e ávido pela contuidade de cada página. Deixo aqui meu registro que diante de sua experiência, com certeza em minha próxima aventura de leitura lembrarei com carinho de você e do excelentíssimo César Ades.

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